Aquele da mente engenhosa



 Eu tinha que abster dele. Mas uma enorme histeria assombrava-me quando tentava enxota-lo da minha vida. Fingia, mas continuava a me importar. O espiava de soslaio. Era fria e o magoava. E quando conseguia o afastar minimamente largava tudo e admitia sua posse sobre minha vida. Mesmo que o fizesse intimamente e em pensamento, apenas.

 Eu poderia suportar seu olhar por horas, afinal nunca exploraria completamente cada canto daqueles olhos cor de um ocre irresistível. Não conseguia entender minha própria fascinação por seus olhos. Mas tinha algo tão instigante quanto uma charada antiga quando ele fixava seu olhar. Quando suas pupilas se dilatavam ou se contraiam faziam isso de maneira única e sempre representavam algum significado. Ele falava pelos olhos. E eu tentava descifrar sua linguagem. Mas é claro que seria impossível, assim como impossível é seu temperamento.

 Era uma sintonia desconexa. Mas isso são apenas devaneio dos muitos que certamente virão. A verdade é que qualquer tipo de demonstração afetiva me enoja. E eu caia em contradição muito facilmente perto dele. Era uma armadilha por todos os lados, apontava em todas as direções. Impossível, mais uma vez. Eu o odiava tão intensamente quanto parecia amar. O odiava por despertar em mim sentimentos inéditos e o amava pelo mesmo motivo. Não é em todo canto que encontramos quem o faça desenterrar sentimentos com  um simples olhar, ou maneira de se portar.

 Mas um devaneio em vão. Ele me faz desperdiçar palavras, me faz desperdiçar pensamentos. Me gasta sorrisos involuntários. Minha possessividade se mostrava tão grande que me sentia inquieta por não saber quantos fios de cabelo ele tinha na cabeça, ou quantas vezes sorria ao dia. Queria saber cada minimo detalhe seu, queria entrar e seu amago e desvendar tudo, e queria imunidade. Imunidade contra seu efeito sobre minha mente e meu corpo.

 Não era se assustar que a ponta do grafiti se partisse quando meus dedos trêmulos tentavam, na maioria das vezes inutilmente, reproduzir em papel seus traços não perfeitos, mas ideais, no minimo ao meu ver. Mas talvez o que me impedisse o sucesso fosse que seus olhos atentos acompanhassem cada movimento meu. No final, ambos insatisfeitos com o resultado ficávamos em silencio. Eu não conseguia explicar por que desenhava qualquer outro rosto perfeitamente e o dele era apenas uma representação com traços sem firmeza, trabalho quase confundível com pintura infantil. Ele soltava um apenas um suspiro, e eu tomava o desenho de suas mãos e guardava junto aos muitos outros fracassados em minha pasta.

- Tudo bem, da próxima vez vai ficar bom. - E se retirava, até seu jeito de andar me irritava, era perfeitamente bem marcado. Tinha gingado.

 E ao deitar a cabeça mais uma vez no travesseiro, meus pensamentos só tinham um rumo. E eu odiava isso, cada dia mais. Por que eu também o amava. Cada vez mais. E eu não sei qual dos dois fazia mais pouco caso disso. Mas não sei se o pouco caso dele era fingimento, e isso me doía, mas não mais quanto me irritava. Eu não poderia suportar a sensação de um sentimento não correspondido. 

 Ele tinha uma mente engenhosa, e não vou economizar modéstias, eu também.

1 Não calaram a boca:

Raphaele C. disse...

Obrigada. :))

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